
1. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DO CONSUMIDOR: MARCO TEÓRICO PARA A BUSCA DA EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA[1]
Temos hoje discussões de vulto acerca da necessidade de se adotar mecanismos alternativos e institutos de Direito como forma de garantir a acessibilidade do cidadão-consumidor à justiça.
Desde a Revolução Industrial[2], com todas as suas amplas e profundas conseqüências econômicas, sociais e culturais, devido à crescente tecnização, caracterizada pela introdução de máquinas, pela produção de bens em larga escala e pela circulação de pessoas por meio de veículos automotores, a sociedade foi submetida ao risco[3] e à complexidade[4].
Tal Revolução trouxe para as ações e relações humanas o fenômeno da massificação[5] social, que, nos tempos atuais, é responsável por grande parte das demandas que sobrecarregam o Judiciário. Assim entende Cappelletti:
… cada vez mais freqüentemente, por causa dos fenômenos de massificação, as ações e relações humanas assumem caráter coletivo, mais do que individual: elas se referem preferentemente a grupos, categorias e classes de pessoas, do que apenas a um ou poucos indivíduos (…) E na verdade, cada vez mais freqüentemente, a complexidade das sociedades modernas gera situações nas quais um único ato do homem pode beneficiar ou prejudicar grande número de pessoas, com a conseqüência, entre outras, de que o esquema tradicional do processo judiciário como “lide entre duas partes”(“Zweiparteinprozess”) e “coisa das partes” (“Sache der Parteien”) resulta completamente inadequado. (1998, p. 57).
Com a Revolução Industrial e sua explosão demográfica, houve nítida separação entre as atividades de produção e comercialização, onde a demanda começou aumentar e com isso gerou o chamado consumo de massa, também conhecido como consumo de larga escala[6]. E nesse viés acrescenta Leite:
Até meados do século XVIII, consumidor e fornecedor encontravam-se em condições de igualdade. A atividade produtiva era artesanal e envolvia apenas os membros da família ou alguns poucos operários. As relações de consumo eram singelas e modestas: o consumidor final, via de regra, adquiria as mercadorias diretamente do produtor. Os bens eram manufaturados de forma quase individualizada para cada consumidor, o que contribuía para diminuir sensivelmente a margem de vícios ou defeitos. (2002, p.25).
Diante disso, tornou-se necessária a implantação de normas destinadas a organizar todo esse processo econômico, que nas palavras de Leite (2002), começa no extrator da matéria-prima, passa pelos produtores primários e secundários e atravessa a rede mercantil-financeira-publicitária, até chegar ao consumidor final.
Assim, é de suma importância identificar os participantes de toda cadeia produtiva[7], não só para proteção dos consumidores, mas para a própria viabilidade e sobrevivência do sistema. A isso acrescenta Filomeno:
É exatamente por isso é que, dentre os direitos básicos do consumidor, está a facilitação de seu acesso aos instrumentos de defesa, notadamente no âmbito coletivo, com o estabelecimento da responsabilidade objetiva, aliada à inversão do ônus da prova. (2001, p. 55).
Vive-se uma crise dos paradigmas sociais[8] num cenário composto por novos sujeitos sociais, novas demandas, conflitos e necessidades emergenciais. Nesse contexto, o paradigma tradicional da ciência jurídica, da teoria do Direito e do Direito processual vem sendo desafiado a cada dia em seus conceitos, institutos e procedimentos.
Diante dessas profundas e aceleradas transformações por que passam as formas de vida e suas modalidades complexas de saber, o direito não consegue oferecer soluções corretas e compatíveis aos fenômenos novos, havendo a necessidade de uma reformulação nas instituições jurídicas, que assim compreende Cappelletti e Garth:
Nossa tarefa [...] será a de delinear o surgimento e desenvolvimento de uma abordagem nova e compreensiva dos problemas que esse acesso apresenta nas sociedades contemporâneas…Originando-se, talvez, da ruptura da crença tradicional na confiabilidade de nossas instituições jurídicas e inspirando-se no desejo de tornar efetivos – e não meramente simbólicos – os direitos do cidadão comum, ela exige reformas de mais amplo alcance e uma nova criatividade. (1988, p.8).
Nesse passo, ocorre um acelerado processo de multiplicação dos direitos, que se justifica pelo aumento de bens a serem tutelados, pelo aumento do número de sujeitos de direito e pela ampliação do tipo de status dos sujeitos, acarretando o nascimento da teoria geracional[9], que, nas palavras de Bobbio (1992), surgiu devido ao grave problema em relação aos direitos do homem em nosso tempo, qual seja, a falta de proteção aos mesmos.
Com o surgimento desses novos direitos[10], o Estado tem buscado incessantemente transformar o processo e a atuação do Judiciário, com a utilização de novos procedimentos para a tutela dos interesses difusos e coletivos, fazendo nascer em nosso ordenamento as ações coletivas, a ação civil pública[11] (Lei nº 7.347/85) e os Juizados Especiais Cíveis onde são propostas ações individuais, em especial aquelas atinentes ao Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).
Assim, torna-se imperioso transpor o modelo jurídico-individualista-formal-dogmático, adequando seus conceitos, institutos e instrumentos processuais no sentido de contemplar, garantir e materializar os novos direitos, através da hermenêutica constitucional aplicada aos institutos normativos, tais como, o Código de Defesa do Consumidor. Leite aprimora esse pensamento expondo:
Em outras palavras, a hermenêutica do direito do consumidor se realiza de acordo com os princípios e normas gerais estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor, os quais, só estão condicionados aos princípios emanantes da Constituição Federal. Destarte, princípios extraídos de outros diplomas legais só podem ser adotados, no âmbito das relações de consumo, quando não conflitarem com os princípios do direito do consumidor nem, evidentemente com os princípios constitucionais (2002, p. 62).
A inserção de ações coletivas no ordenamento jurídico trouxe inúmeras perplexidades ao processo, que é formado sob a égide “da obrigatória coincidência entre os sujeitos da relação jurídico-material controvertida e os sujeitos do processo” (MOREIRA, 1977, p.110).
O Código de Defesa do Consumidor[12], que, conforme Leite (2002), forneceu um bom arsenal, criando mecanismos protetivos na esfera administrativa e instrumentos tendentes a desobstruir o acesso à providência judicial, tem trazido muitas vitórias aos consumidores, que estão cada vez mais conscientes de seus direitos, bem como exigindo que graves problemas presentes nas relações de consumo sejam sanadas, destacando-se a consciência ecológica e atitudes visando à proteção do meio ambiente[13].
Nesse viés, funciona a instituição do Ministério Público como órgão garantidor da ordem democrática e constitucional de grande valia para a comunidade, quando intervém no processo civil na condição de promovente de ações que versem sobre direitos transindividuais. Segue essa linha de pensamento, Moraes (2001) quando enfatiza que a realidade rompe com o formalismo processual destruindo instrumentos cuja complexidade é digna das mais altas indagações jurídico-intelectivas, suscitando estudos fulgurosos, mas cuja praticidade resulta nula: eis a raiz da premência do agir ministerial.
Nesta mesma categoria de direitos do gênero interesses transindividuais[14], aparecem os interesses coletivos em sentido estrito, que são interesses comuns a uma coletividade determinada de pessoas, e, como afirma Bolzan de Morais (1996) a elas somente. Assim, para a caracterização destes interesses pressupõe-se a delimitação do número de interessados com a existência de um vínculo jurídico[15] que serve de ligação aos membros desta comunidade para que a titularidade possa ser coletivamente definida. Assim argumenta Bolzan de Morais:
O que se percebe desde logo é que, embora coletivos, tais interesses têm uma titularidade perfeitamente visível, pois identifica com os membros de um determinado grupo, unidos por um laço jurídico. Neste espectro podemos, então, situar, exemplificadamente, a sociedade mercantil, o condomínio, a família, o sindicato, os órgãos profissionais, entre outros, como grupos de indivíduos nos quais expressam-se tais interesses (1996, p. 128).
Por outro lado, também como espécie dos direitos transindividuais, estão inseridos os interesses difusos. Esses interesses estão ligados a situações fáticas em que não se pode conceituar os seus titulares, todavia, sua infringência atinge a toda a sociedade com danos enormes aos seus membros. Essa reunião de pessoas em torno de um interesse difuso assenta-se, como refere Cappelletti (1977) em fatos genéricos, acidentais e mutáveis, como, por exemplo, habitar a mesma região, consumir os mesmos produtos, viver sob determinadas condições socieconômicas, sujeitar-se a determinados empreendimentos[16].
Analisando a questão dos interesses difusos, destaca Mancuso:
Os interesses difusos apresentam as seguintes notas básicas: indeterminação dos sujeitos; indivisibilidade do objeto; intensa conflituosidade; duração efêmera, contingencial. (…) Essa “indeterminação de sujeitos” deriva, em boa parte, do fato de que não há um vínculo jurídico a agregar os sujeitos afetados por esses interesses: eles se agregam ocasionalmente, em virtude de certas contingências, como o fato de habitarem certa região, de consumirem certo produto, de viverem numa certa comunidade, por comungarem pretensões semelhantes, por serem afetados pelo mesmo originário de obra humana ou da natureza. (…) Sob a ótica objetiva, verifica-se que os interesses difusos são indivisíveis, no sentido de serem insuscetíveis de partição em quotas atribuíveis a pessoas ou grupos preestabelecidos. (…) eles [interesses difusos] estão soltos, fluidos, desagregados, disseminados entre segmentos sociais mais ou menos extensos; não tem um vínculo jurídico básico, mas exsurgem de aglutinações contingenciais, normalmente contrapostas entre si.(…) De fato, os interesses difusos, de ordinário, não se apresentam jungidos a um vínculo jurídico básico, mas a situações contingenciais, deriva a conseqüência de que eles são mutáveis como essas mesmas situações de fato; e mesmo podem fenecer e desaparecer, acompanhando o declínio e extinção dessas situações(…) Por outras palavras, não exercitados a tempo e hora, os interesses difusos modificam-se acompanhando a transformação da situação fática que os ensejou. (2000, p.84).
Tem-se, ainda, a categoria dos interesses individuais homogêneos, que nada mais são que interesses ou direitos individuais[17], tratados de forma coletiva com causa comum que afeta um número específico de pessoas, embora de forma e com conseqüências diversas para cada uma delas.
Assim, corrobora Bolzan de Morais (1996) ao analisá-los como sendo aqueles que atingem diversas pessoas ao mesmo tempo, ou seja, são diversas afetações individuais, particulares, originárias da mesma causa, o que coloca os prejudicados numa mesma situação, embora cada um tenha pretensões distintas.
Nery Júnior conceitua os interesses individuais homogêneos como sendo
… os direitos individuais cujo titular é perfeitamente identificável e cujo objeto é divisível e cindível. O que caracteriza um direito individual comum como homogêneo é sua origem comum. A grande novidade trazida pelo CDC no particular foi permitir que esses direitos individuais pudessem ser defendidos coletivamente em juízo. Não se trata de pluralidade subjetiva de demandas (litisconsórcio), mas de uma única demanda, coletiva, objetivando a tutela dos titulares dos direitos individuais homogêneos. A ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos é, grosso modo, a class action brasileira. (1999, p. 1.864).
Acrescenta-se a esta análise as palavras de Saad:
São homogêneos os interesses ou direitos individuais que tenham origem comum… O que se há de entender por interesse de origem comum? Informa qualquer dicionário que ”origem” é princípio, começo ou procedência; em sentido figurado, princípio ou causa. Parece-nos que o Código usou o vocábulo na acepção de procedência. Mas aí o inciso fica extremamente obscuro. Se for o mesmo o autor da lesão a alguns ou muitos consumidores, o caso pode ser classificado como de direito coletivo ou difuso. Diz o artigo sob estudo que interesses ou direitos individuais homogêneos são aqueles que derivam de origem comum. E, por serem individuais, divisíveis e individualizáveis, não são, na sua essência, metaindividuais ou coletivos. Quando em grande número esses interesses e direitos homogêneos, surge a conveniência de terem tutela jurisdicional coletiva. De outra parte, é incontestável que eles, no âmbito processual, deveriam ter a forma de litisconsórcio facultativo (art. 46 do CPC). Acontece que por força do disposto no parágrafo único do sobredito art. 46 (introduzido pela Lei n. 8.952/94), foi o juiz contemplado com a faculdade de limitar o número de litisconsortes facultativos, quando ficar ameaçada a rápida solução do litígio ou quando dificultar a defesa. A defesa coletiva dos interesses e direitos homogêneos evita esses inconvenientes e, ao mesmo passo, não sobrecarrega o serviço forense.(…)Neste passo, lembramos que, no Código, a defesa coletiva dos direitos individuais assemelha as class actions de criação jurisprudencial norte americana. Nas class actions é admitida sua propositura por qualquer consumidor que tenha sido lesado em seus interesses; no Código, o art. 82 dá-nos o rol de pessoas jurídicas públicas e privadas (inclusive o Ministério Público) com legitimação para propor tais ações. Como remate a esta digressão acerca dos interesses e direitos homogêneos, cabe-nos salientar que eles devem ser em número tão elevado que possam equiparar-se a um segmento da sociedade. (1999, p.595).
Tendo em vista a complexidade da jurisdicialização em face desses novos direitos, o Poder Judiciário, no futuro, terá que se cingir a uma visão do processo como meio eficaz para a solução dos conflitos de interesse, fazendo uso da matriz hermenêutica, pois há interesses de toda uma coletividade vinculados à realização do social.
Dentre os diversos doutrinadores que analisam os reflexos da modernidade no processo, rompendo com a ética individualista, tendenciando-se a ética coletivista, destaca-se Cappelletti e Garth que assim dissertam:
A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos por particulares. As reformas discutidas a seguir são a prova e o resultado das rápidas mudanças que caracterizam essa fase. Verifica-se um movimento mundial em direção ao que o Professor Chayes denominou litígios de “direito público” em virtude de sua vinculação com assuntos importantes de política pública que envolvem grandes grupos de pessoas. (1988, p.49).
Dentro da atual crise de eficácia do processo civil frente à complexidade dos interesses ligados as relações de consumo[18], é necessário que o operador jurídico reflita acerca da aplicação da hermenêutica aos paradigmas de Direito e de Estado vigentes a fim de contribuir para a acessibilidade do cidadão à justiça.
Nesse sentido, Streck (2000) adota uma postura substancialista[19], partindo da premissa de que o Poder Judiciário deve assumir uma postura intervencionista, longe daquela postura própria do modelo liberal-individualista-normativista, que permeia a dogmática jurídica predominante no Brasil. A dogmática jurídica não convive pacificamente com os princípios constitucionais, a exemplo, do princípio do acesso à justiça, inserto no artigo 5°, inciso XXXV da Carta Magna[20].
O Estado, como afirma Streck (2000) preparado para lidar com disputas interindividuais, ou como se pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tício, próprios de um modelo liberal-individualista, não oferece respostas aos problemas decorrentes da transindividualidade advinda ao modelo do Estado Democrático de Direito.
Esse comprometimento com dimensões processuais e substantivas implica assumir a tese de que, no Estado Democrático de Direito, o Direito tem uma função transformadora. Assim, essa tese não é perceptível no plano do agir cotidiano dos juristas, haja vista a inefetividade da expressiva maioria dos direitos sociais previstos na Constituição, tal como, os direitos do consumidor. Acrescenta-se, ainda, em outras palavras Streck:
A crise do modelo (modo de produção de Direito) se instala justamente porque a dogmática jurídica, em plena sociedade trans-moderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos Códigos (civil, comercial, penal, processual penal e processual civil, etc.). Esta é a crise de modelo (ou modo de produção) de Direito, dominante nas práticas jurídicas de nossos tribunais, fóruns e na doutrina. (2000, p. 36).
Portanto, diante do assunto não se pode deixar de falar da crise da hermenêutica que está em todos os campos operacionais do Direito, principalmente, no que se refere às interpretações relativas aos interesses transindividuais. Härbele crê que,
Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos “vinculados às corporações” (zünftmässige Interpreten) e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta.Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade. (1997, p. 13).
É preciso que se faça uma leitura Hermenêutica do Código de Defesa do Consumidor, aplicando-o constitucionalmente, a fim de que se possa preencher algumas lacunas. É claro que não se pode querer que a Constituição resolva todos os problemas, senão estar-se-á fechando esta também, eis que a própria ciência da hermenêutica não pretende que todos esses espaços sejam preenchidos, senão não haverá mais interpretação. Tanto o Direito brasileiro quanto os juristas não estão preparados para resolver os conflitos transindividuais. Nossa Constituição é rica em direitos, mas ao mesmo tempo, tem-se uma inefetividade muito grande em sua aplicação, deixando os cidadãos desprotegidos.
A cidadania é um reclamo diário da modernidade. A cada dia, o cidadão toma conhecimento de seus direitos. Sabe que os têm e luta pelos mesmos. Incumbe ao Estado, que se funda, dentre outros, no princípio da soberania popular propiciar meios e formas para o exercício do acesso à justiça e não apenas ao ordenamento jurídico.
O Poder Judiciário, como um dos emanadores da soberania estatal deve demonstrar sensibilidade crescente para a análise das demandas que envolvam interesses inerentes ao consumidor, sejam eles transindividuais difusos ou coletivos ou, ainda, individuais homogêneos.
Todas as Constituições brasileiras enunciaram o princípio da garantia da via judiciária. Não como mera gratuidade universal no acesso aos tribunais, mas como garantia de que a via judiciária estaria franqueada para defesa de todo e qualquer direito, tanto contra particulares, como contra poderes públicos, independentemente das capacidades econômicas de cada um[21]. Se, por um lado, a defesa dos direitos e o acesso de todos aos tribunais tem sido reiteradamente considerado como o coroamento do Estado de Direito, também, por outro lado, se acrescenta que a abertura da via judiciária é um direito fundamental (CANOTILHO, 1998, p. 728).
Os integrantes do Poder Judiciário devem assumir o desafio do momento histórico e produzir algo de concreto para multiplicar a sua capacidade de resolver os conflitos advindos da cultura consumeirista, ampliando as alternativas para a solução harmônica das diferenças entre o hipo e o hipersuficiente. Isso será, verdadeiramente, ampliar o acesso à Justiça.
Urge que os juristas acostumem-se a conviver com alternativas diversas de realização da justiça[22], ciente de que a jurisdição estatal não é a única concretizadora do justo, mas terá que coexistir com as tendências de solução pacífica dos conflitos sejam elas a conciliação, a mediação, a arbitragem ou mesmo os juizados especiais civis. Se o Estado não se aperceber de que os tempos são outros e de que o princípio do acesso à justiça é algo de muito mais sério do que garantir a institucionalização do conflito mediante o processo – eis que abarca outros princípios inerentes ao processo – poderá ser surpreendido com a substituição da Justiça convencional por outras formas[23] de maior eficiência na mitigação da concretização do acesso à justiça de que padece os consumidores aflitos.
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[1] Texto produzido por Angelita Woltmann e Raquel Buzatti Souto durante a Especialização em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA/2004).
[2]A expressão Revolução Industrial foi difundida a partir de 1845, por Engelf um dos fundadores do socialismo científico, para designar o conjunto de transformações técnicas e econômicas que caracterizam a substituição de energia física pela energia mecânica, da ferramenta pela máquina e da manufatura pela fábrica no processo de produção capitalista.
[3] A sociedade do risco é pois uma sociedade que se põe ela própria em perigo: basta pensar no … risco alimentar (doença da <
[4] Cf. nota de rodapé n° 1.
[5] O sentido dessa massificação como sendo decorrente do avanço do nosso mundo contemporâneo, de fato, caracterizado por uma organização econômica cuja produção, distribuição e consumo apresentam proporções de massa. Trata-se de característica que, por outro lado, amplamente ultrapassa o simples setor econômico, para se referir também às relações, comportamentos, sentimentos e conflitos sociais. (CAPPELLETTI, 1998, p.56-57)
[6] Tais expressões como “consumo em massa” ou consumo em larga escala” foram utilizadas por Roberto Basilone Leite (LEITE, 2002, p.25).
[7] Como integrantes da cadeia produtiva tem-se o consumidor de um lado, e o fornecedor do outro.
[8] O direito brasileiro e a dogmática jurídica que o instrumentaliza está assentada em um paradigma liberal-individualista que sustenta essa desfuncionalidade que, paradoxalmente, vem a ser a sua própria funcionalidade. (STRECK, 2000, p. 33)
[9] Assim classifica-se como 1ª geração dos direitos individuais, que pressupõem a igualdade formal perante a lei e consideram o sujeito abstratamente; a 2ª geração dos direitos sociais, nos quais o sujeito de direito é visto enquanto inserido no contexto social, ou seja, analisado em uma situação concreta; na 3ª geração, os direitos transindividuais, chamados direitos coletivos e difusos, e que basicamente compreendem os direitos do consumidor e os direitos relacionados ao meio ambiente; por fim tem-se a 4ª e 5ª geração, dos direitos de manipulação genética, relacionados a biotecnologia e bioengenharia, bem como os advindos da chamada realidade virtual, que compreendem a via internet. (OLIVEIRA JUNIOR, 2000, p. 85-86).
[10]Cf. nota de rodapé n° 6.
[11] Não há como negar o avanço dos tribunais superiores no reconhecimento da legitimidade de se propor ação civil pública em defesa dos direitos difusos, particularmente aqueles “novos” direitos referentes ao meio ambiente e aos consumidores. (LEITE, 2002, p. 28-29).
[12] Mesmo com o advento do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/02), observa-se que o CDC continua em plena vigência, aplicável às relações de consumo, não obstante aquela norma sirva de fonte subsidiária de interpretação e integração desta, cuja hermenêutica consumeirista de mais de uma década igualmente exercerá certa ascendência interpretativa em face dos institutos coincidentes positivados pelo NCC.
[13] Isso pode ser observado na Lei de n° 7.802/89, que dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Atualmente, a preocupação gira em torno dos alimentos transgênicos: uma pesquisa desenvolvida pelo European Comission Directorate General XII (XII Diretório Geral da Comissão Européia), órgão oficial da Comunidade Européia, comprova a exigência dos consumidores quanto à rotulagem dos alimentos transgênicos. Fonte:<http://www.idec.org.br/paginas/posicao_entidades.asp> Acesso em: 15 dez.2003.
[14] Os interesses transindividuais, são assim definidos, para efeitos de CDC, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. (FILOMENO, 2001, p. 35).
[15] Expressão utilizada por Bolzan de Morais (1996, p. 128).
[16] Em razão disso, o grupo ligado aos interesses difusos apresenta-se fluido, indeterminado e indeterminável, pois estão diluídos na satisfação de necessidades e interesses de amplos setores da sociedade de massas, característica dos tempos atuais (MORAIS, 1996, p.138).
[17] Interesse individual, como o próprio nome diz, é aquele atinente ao indivíduo isoladamente, não abarcando situações em que o mesmo se insira em determinados contextos coletivos e grupais. (MORAIS, 1996, p.113).
[18] As relações de consumo, nada mais são do que relações jurídicas por excelência, pressupondo, por conseguinte, dois pólos de interesse: o consumidor-fornecedor e a coisa, objeto desses interesses. (FILOMENO, 2001, p. 42).
[19] O modelo substancialista, contrapondo ao modelo procedimentalista, capitaneada por autores como Habermas, que, mais do que equilibrar e harmonizar os demais Poderes, o Judiciário deveria assumir o papel de um intérprete que põe em evidência, inclusive contra maiorias eventuais, a vontade geral implícita no direito positivo, especialmente nos textos constitucionais, e nos princípios selecionados como de valor permanente na sua cultura de origem e na do Ocidente. Para esse modelo, a Constituição estabelece as condições do agir político-estatal, a partir do pressuposto de que a Constituição é a explicitação do contrato social. (STRECK, 2002, p. 141).
[20] Registre-se que, muito embora a Constituição garanta aos cidadãos assistência judiciária gratuita, na maioria dos Estados sequer existe Defensoria Pública organizada. Este fator, além de dificultar o acesso à justiça aos necessitados, acarreta problemas, tais como, a deficiência de defesa dos consumidores frente a hiperssuficiência dos fornecedores e o desequilíbrio das partes litigantes.
[21] O direito brasileiro é dotado de amplo sistema de proteção dos direitos transindividuais e dos direitos individuais que merecem processo diferenciado diante da sociedade de massa, a exemplo das leis 4.717/65 (Lei da Ação Popular), 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), 8.078/90 (CDC), 8.884/94 (Lei de abuso do Poder Econômico) e 8.069/90 (ECA). (MARINONI e ARENHART, 2003, p. 752-753).
[22]Aplicar a lei quando injusta passa a ser um ato cômodo no qual o Juiz retira de si, como escravo, toda a responsabilidade ética pelo julgamento. Ou seja, lamenta a lei ser injusta e afirma que nada pode fazer porque a culpa é do legislador. E o jurisdicionado? (CARVALHO, 1992, p. 22)
[23] Como exemplo pode se citar o Ombusdsman do Consumidor, criado em 1970, na Suécia, que atualmente tem análagos em outros países como sendo uma instituição explicitamente criada para representar os interesses coletivos e fragmentados dos consumidores. (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 54).
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